A “wikirevolution” da Tunísia

Capital promove buzinaço pela “wikirevolution’

RENATA LO PRETE
MELCHIADES FILHO
EM TÚNIS

O centro de Túnis, capital da Tunísia, descobriu ontem o que é buzinaço.
Fez barulho de madrugada, para festejar a queda do preço de pão, leite e açúcar -derradeira promessa de Ben Ali na tentativa de se segurar na Presidência.
E, no final da tarde, para celebrar o relato de que o ditador decidira fugir do país depois de 23 anos no poder.
Pouco antes, milhares de pessoas marchavam pela Habib Bourguiba, principal avenida de Túnis, decorada com um gigantesco cartaz de Ben Ali -a fotografia que (ainda) se vê por todo o país, em praças, monumentos e comércio.
Chegamos ao local no momento em que a polícia procurava, sem sucesso, dispersar o protesto com gás lacrimogêneo.
Vínhamos de Cartago, subúrbio de Túnis, depois de uma malsucedida visita a ruínas históricas -as ruas tinham sido bloqueadas por fogueiras de pneus.
Ao contrário dos dias anteriores, blindados do Exército não ocupavam mais o viaduto que cruza a via.
Em vez deles, fileiras de carros “civis” -a despeito do tráfego escasso, pois ontem houve greve geral na cidade. Eram motoristas que pararam para observar o confronto e incentivar os manifestantes. Lá embaixo, empunhando cartazes, só homens e sobretudo jovens.
A inflação e o desemprego assolam os países do norte da África e do Oriente Médio. Há especialmente na Tunísia uma geração de jovens sem perspectiva.
Foi o ato desesperado de um deles que, há cerca de um mês, serviu de estopim para o levante -o rapaz, com formação universitária, ateou fogo ao corpo quando lhe tiraram a licença da banca de frutas com a qual sustentava a família.
E foi a rede de jovens que ajudou a organizar os protestos pelo país e garantiu que estes fossem divulgados -a despeito da repressão policial, do controle estatal da imprensa (o editor do principal jornal “independente” é genro de Ben Ali) e da censura à internet (Facebook, Twitter e Youtube foram bloqueados).
Durante esta semana, grupos de jovens eram vistos o tempo todo no centro de Túnis trocando mensagens pelo celular.
A insistência do presidente em caracterizar a insatisfação como obra de “terroristas” só fez apressar os gritos de “fora, Ben Ali”.
Pão barato e Youtube livre não bastavam. Os jovens não recuaram de exigir a renúncia do ditador -exposto como “corrupto” e “incompetente” nos despachos recém-vazados da diplomacia dos EUA e replicados pelos insurgentes. Ainda que o futuro seja incerto, pareciam empolgados com sua “wikirevolution”.

Revolta derruba o ditador da Tunísia
Presidente Zine el Abidine Ben Ali foge do país após 23 anos no poder
Sem precedentes no mundo árabe, motim popular poderá ter impacto na região; premiê assume governo
JEFFERSON PUFF
DE SÃO PAULO

Milhares de pessoas tomaram as ruas da Tunísia ontem para celebrar algo jamais visto no mundo árabe: pressionado, o ditador Zine el Abidine Ben Ali, 74, cedeu a protestos e fugiu do país após mais de 23 anos no poder.
Agências de notícias indicaram que o ditador pegou um avião e tentou se exilar na França, mas teve o pedido rejeitado. Seu destino ontem à noite era incerto.
Com apoio dos militares -o que gerou suspeitas de que as Forças Armadas pegaram carona na mobilização popular e deram um golpe-, assumiu o poder o premiê Mohamed Ghannouchi, até então aliado de Ben Ali.
Ele acenou com a realização de eleições em seis meses, o que havia sido prometido por Ben Ali como um último gesto para tentar se manter no cargo.
A revolta na ex-colônia francesa pode ter implicações regionais. O norte da África é dominado por regimes ditatoriais. Líbia e Egito são dominados há décadas pelos mesmos líderes.
Logo após a queda do ditador, surgiram sinais de liberalização. “Os preços do pão e do leite foram reduzidos e sites como o YouTube foram liberados, atendendo às reivindicações populares”, disse à Folha o embaixador brasileiro na Tunísia, Luiz Antônio Fachini Gomes.
Mesmo assim, “o clima é de pânico e incerteza e ainda não se sabe como o premiê será aceito”, complementou.
Anteontem, após 23 mortes confirmadas, Ben Ali ordenou um cessar-fogo às tropas e afirmou que deixaria o comando do país em 2014.
Insuficientes, os anúncios não interromperam os protestos e, de acordo com fontes médicas, mais 12 civis morreram.
ONGs de direitos humanos contam 66 mortos, incluindo suíços e franceses. Gomes diz que não há residentes ou turistas brasileiros feridos.
O país tem uma pequena comunidade brasileira, com cerca de 60 pessoas, em sua maioria cônjuges de tunisianos, empresários e jogadores de futebol.

FÚRIA E EUFORIA
Na capital Túnis, manifestantes, exigindo sua renúncia imediata, saquearam e incendiaram casas de familiares do ditador, que, segundo a Reuters, foram presos.
Na Tunísia há um ano, o empresário brasileiro Ruy Fluckiger acredita que o alto custo de vida e casos de corrupção motivaram a revolta.
“Quando ele [Ben Ali] foi embora, todos foram para a rua, buzinando, em clima de comemoração. Parecia o Brasil na época do Tancredo”, relatou à Folha por telefone.
No interior, marchas com mais de 10 mil jovens foram registradas, além de saques e explosões de postos policiais. Antes da fuga de Ben Ali, o governo já havia fechado o espaço aéreo e declarado estado de emergência.
Ainda ontem, voos da Europa com destino a Túnis já tinham sido cancelados.
Os distúrbios se iniciaram em dezembro, quando um jovem ateou fogo ao corpo após ter perdido a licença para operar sua barraca de frutas. Morreu em 4 de janeiro.
Como uma bola de neve, protestos estudantis começaram de forma localizada, até acontecerem confrontos mais sérios no início da semana. A reação do governo de censurar sites como YouTube e Facebook, além do vazamento de documentos pelo WikiLeaks revelando corrupção no regime de Ben Ali, aumentaram a revolta.
Colônia francesa até 1956, a Tunísia foi governada por Habib Bourguiba até 1987, quando Ben Ali tomou o poder num golpe de Estado.

Com agências de notícias

Folha de São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 2011

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